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Um ensaio sobre a adaptação de “Pele Negra Máscaras Brancas”, Frantz Fanon, pela companhia de dança Treme Terra

Por Fily Kanouté

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            Num cenário mergulhado numa escuridão de breu, objetos indefiníveis se movem furtivamente; parecem fugir ou se esconder de alguém ou de algo. Sua presença é tão somente denunciada por luzes tênues, duas ou três. Só percebemos tratar-se de formas humanas, por um texto-luz, um texto que bate alegorias humanas revelando-lhes, ou pelo menos tentando revelar-lhes a identidade. Não dá para ler e muito menos entender, a claridade das letras, esteticamente interessante e original mais desconcerta do que esclarece. Sobrepoem-se a ela vozes que quebram a fixidez (figé) artificial dos vultos dando-lhes vida, ou melhor dizendo, devolvendo-lhes sua subjetividade. Mas ainda não se sabe quem é quem neste magma humano, estes arremedos de seres. O espetáculo vai se esmerar para dizê-lo.

            O embate na Ouverture entre o escrito e o oral, a moderna linguagem do grafite, das artes visuais, dos efeitos de luz e sua  justaposição sugerem que a miscigenação será a tônica dum espetáculo que exalta a reabilitação do negro e sua cultura.

            Frantz Fanon nasceu em 1925, em plena “Années Folles” (Anos Loucos), após a l Guerra Mundial, uma guerra “fratricida” entre os europeus que capitularam do processo civilizátorio.  A concepção das teorias sociais racistas já não prevalecia tornarase anacrônica e obsoleta após trabalhos de pesquisadores como Leo Frobenius, Maurice Delafosse, (les civilisations négro-africaines) entre outros. Não só no continente africano como em outras partes do mundo a Europa não tinha mais condições de servir de farol nem de modelo neste processo.

            Esta época viu surgir uma produção artística e literária que não somente questionavam ou simplesmente refutavam os métodos e as expressões que levaram a esta hecatombe, como também passaram a incorporar expressões artísticas e manifestações das culturas “periféricas”: O cubismo de Picasso com claras influências das máscaras africanas (Picasso fará mais tarde o emblema do I Congresso de Aristas e Intelectuais Negros em 1956 em Paris), o surrealismo cuja melhor expressão poética se encontra na obra de Aimé Césaire, segundo André Breton, autor do Manifesto Surrealista e o dadaísmo, fundado por dois revolucionários da arte Francis Picabia e Tristan Tzara, que se destinou a “semear a anarquia nas formas estabelecidas da cultura francesa”. Não podemos deixar de evocar a música de Stravinski entre outros compositores que se inspiraram na música negro-americana nesta Paris onde se reinventava a cultura do primeiro pós-guerra avessa a supremacia europeia sobre o resto do mundo colonizado. Joséphine Baker, uma bailarina negra americana – com seus músicos e bailarinas do Jazz de Revue - era a grande estrela de Paris, capital cultural de toda a Europa.

            A primeira antologia de poesia negra Anthologie Nègre, publicada em 1916 em plena guerra, foi organizada por Blaise Cendrars, amigo de Oswald de Andrade, autor do Manisfesto Antropofágico. Oswald foi um dos defensores de Anitta Malfati, cuja exposição em 1917 desencadeou todo o processo que levou à Semana de Arte Moderna de 22. Tudo isto diz muito sobre uma certa sinergia que existia entre várias partes do mundo, lidando com o mesmo problema de identidade,  que encontramos na África, na Ásia, e nas Américas com nomes tão diversos como Negritude, Realismo fantástico ou mágico, Manifesto antropofágico....

Segundo o poeta argentino Jorge Quiroga “ ...A arte contempoânea, arte de ruptura por excelência, tanto na Europa como na América Latina, nasceu dos chamados “ismos”. Futurismo, suprematismo, dadaísmo, cubismo e ultraismo  foram[UB1]   movimentos que agruparam jovens europeus determinados a desencadear esta ruptura....

...No Brasil, o “modernismo”, movimento paralelo e semelhante ao vanguardismo hispano americano, produziu Macunaíma de Mário de Andrade....., uma obra emblemática da ruptura em relação a uma elite branca esclerosada no Brasil.

   A noção de Antropofagia já se encontrava em Shakespeare na peça A Tempestade na personagem de Caliban (esta palavra é anagrama de canibal).  Nos reportamos a este personagem para falar da dialética do mestre e do escravo, quando o escravo descobre que o mestre é quem depende do escravo e o mestre descobre que é ele que depende do escravo. Quem provê a quem? Quem  sobreviveria ou quem padeceria sem a presença do outro. Esta revelação talvez seja a condição sine qua non para a reabilitação do negro como sujeito. O negro vive atolado na natureza (englument dans la nature), ele vive numa fase ante-história segundo as teorias racistas. Supõe se que ao sair desta fase, os passos seguintes são o entendimento, a consciência, a razão e finalmente o espírito abosluto. Frantz Fanon reintrepretou este procedimento de Hegel para estabelecer três níveis para emancipação do negro. Fora o atoleiro na natureza, há a assimilação ou alienação, a consciência e a libertação. Ao longo do século 20, o negro “alforriado”, assimilado e colonizado se debate para se libertar desta sua sina maldita.

            Frantz Fanon é de uma geração de estudantes negros posterior ao surgimento da revista L´Etudiant Noir, publicado por Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Léon Gontran Damas. Esta revista, serviu de forum e veículo de divulgação do pensamento e da poesia da juventude negra numa Paris que era a “plaque tournante” dos revolucionários da cultura. A emoção é negra como a razão helena ou a razão discursiva do branco e  a razão intuitiva do negro, de Senghor corroborava as teses racistas e causou muitas controvérsias. A concepção de cultura de Frantz fanon e de outros intelectuais e cientistas negros como Cheikh Anta Diop (The African Origin of the Civilization) é diametralmente oposta à de Senghor.

            A abordagem que o espetáculo da Troupe Treme Terra adota tira literalmente a obra de frantz Fanon de letra, e a traduz em outras linguagens como a dança, a música, o vestuário, as artes visuais

Os artistas em cena são brasileiros negros, brancos e mestiços de vários graus de miscigenação cuja identidade se lhes revela em diferentes fases e circunstâncias de suas vidas. O brasileiro, um ente essencialmente miscigenado biologicamente ou culturalmente assim como toda a população americana, se descobre muitas vezes não branco, à sua revelia, contra sua vontade. Se levarmos em consideração que o fato de se saber não branco o torna também não cidadão, os Pele Negra Máscaras Brancas se tornam então  Os Condenados da Terra.

            O espetáculo já parte para a praxis ao elencar em cena aspectos da cultura da diáspora que vão desde as tradições mais genéricas como a religião representada num ritual em língua, dança, indumentária, música, canto genuinamente africanos até aspectos híbridos da cultura com uma estética moderna como a capoeira estilizada em consonância com o espetáculo, o canto declamado do rap, com passos característicos, as artes visuais graffiti computação gráfica, design eletrônico. 

            A música e a coreografia percorrem um universo que vai da África à diáspora mesclando as linguagens, uma hibridação consentida que denota o propósito de não só se abrir ao outro mas de aderir a ele, uma proposta cara a Senghor quando ele fala de “civilisation de l´universel”. O problema é que nesta mundialização, uns poucos ficam com o bônus e a maioria “periférica” vai carregando o piano. Isto fica claro com a indústria cultural, surgida da cultura de massas quando as potências transnacionais da indústria do entretenimento açambarcam os meios e os fins de tudo quanto se produz em termos de cultura. Eu evoco isto porque há no espetáculo uma reapropriação da mais importante expressão da cultura popular do século 20: o rock and roll cujos primeiros expoentes eram artistas negros Little Richard, Chuck berry, .....). O rock é hoje a linguagem preferida e monopólio dos brancos que a estilizam e nele incorporam elementos de sua realidade sobretudo na cultura urbana. Choca num primeiro momento as distorções da guitarra e o delírio dos arranjos que nos remetem ao psicodélico, assim como a coreografia que trazem à mente Chico Science (Da Lama aos Caos), Red Hot chilli Pepper ou Os baianos da banda Catapulta (temos muitos outros casos), entrementes à Ode aos Orixás, tambores, Capoeira, hip hop, Grafite, artes visuais.

            Chama a atenção neste trabalho o foco sobre a religiosidade africana, algo não referido claramente na obra de Fanon, um marxista, que trabalhou como psiquiatra numa França cristã e numa Argélia muçulmana e cujo pensamento como psiquiatra num império colonial, abrangia realidades da África, Europa, América, Ásia, (Indochina francesa: Vietnam, Camboja, Laos), até Oceania (Polinésia Francesa). Este ponto é importante para justificar ou pelo menos tentar justificar o recorte feito por Treme Terra uma vez que o humanismo de Frantz Fanon permite esta licença poética ao escalar o culto dos orixás como esteio da cultura negra brasileira. O filme de Goran Olsson baseado num capítulo de Les Damnés de la Terre traz desde o início questões ligadas ao feminismo algo parecido com a questão de gênero evocada também na abertura do espetáculo de treme terra.

Gostaria de concluir estes mal traçados a respeito deste êxodo dizendo que, se  a cor da pele nos une, o périplo além-mar nos confrontou a realidades tão díspares que vivemos nos estranhando uns aos outros. A primeira tentativa de reencontro dos negros após séculos de aniquilamento aconteceu  quatro anos depois da publicação de Pele Negra (1952), no Primeiro Congresso de Artistas e Intelectuais Negros (1956) em Paris. Fanon e Dubois foram os dois grandes ausentes.

Após um primeiro momento de congraçamento, as diferenças surgiram já que a África mística e mítica de Senghor, o marxismo de Césaire e o puritanismo protestante do norte americano  Richard Wright, quase levaram ao cancelamento do congresso. Nós temos ainda além das questões de superestrutura (política e religião) o fato de o americano lutar pelo integracionismo: ser tido como cidadão americano com os mesmos direitos civis que os brancos. O africano quanto a ele lutava pela independência, pela desintegração do império colonial. A situação era tão mais crítica quanto tudo acontecia em meio a uma disputa visceral entre o imperialismo capitalista americano e o social-imperialismo soviético, a independência da India e a criação do estado de Israel, o  advento, logo depois da China Popular de Mao em 1949, a guerra da Indochina que termina em 1954 quando começa a guerra de independência da Argélia, a Conferência dos não alinhados em bandoeng 1955, invasão da hungria pela URSS em 1956, primavera de Praga, o militarismo suplantando o caudilhismo mundo afora, tantos problemas que levaram a questão negra (direitos civis, independências, apartheid) ao meio de um verdadeiro furacão na cena política internacional. Por abranger tantas questões e ter dialogado com vários aspectos do mundo contemporâneo a obra de Fanon é um desafio pertinente e ousado para os dias de hoje, basta olhar ao redor para ver um mundo dilacerado num processo de autofagia que precisa ser discutida e combatida com coragem e lucidez para assentar a utopia de uma antropofagia em que se nutrir do outro não significa a sua destruição mas o enriquecimento de ambos.

 

Fily Kanouté

Senegalês Pan-africanista, crítico, ensaísta, professor e músico

Licencié ès lettres Université Cheikh Anta Diop

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